Eu tenho como hábito olhar em redor e analisar, quase automaticamente, os comportamentos sociais das pessoas. Simplesmente porque é educativo, ao invés de ser um prazer mesquinho, como seria para a senhora que mora umas casas abaixo e está sempre à espreita à entrada da casa, e depois comenta com a outra vizinha o que viu o canalizador da tia da mãe do menino Zézinho fazer. Mas confesso que raras são as vezes que não me rio ou insurjo contra aquilo que vejo. E há um tópico que me deixa intrigado, porque reparo nele desde criança: as conversas de jantar.
Quando se dá um jantar de família, tem de ser um jantar de família como deve ser: vêm os irmãos, os sobrinhos, os pais, os avós, os cunhados e ocasionalmente lá vêm os tios. Sim, porque estes jantares têm de ser feitos, mesmo em circunstâncias tão chatas e complicadas como o espaço da casa ser reduzido (e coitada da tia Joaquina que mal consegue passar pelas pessoas para se sentar à mesa) ou ter de se comprar um frango frito à última da hora. Mas isso é o que menos interessa. O importante é conviver! E enquanto as mulheres convidadas oferecem a sua ajuda à dona de casa para levar a comida ou colocar na mesa os talheres que faltam (e isto é um erro crasso, porque antes dos convidados chegarem já há quem reclame que a mesa não pode estar assim, tudo tem de estar perfeito), os homens cumprimentam-me e criam conversa de circunstância, aquela que dá início à interacção humana, como o revolver que dá início à corrida. Mas reparem bem: enquanto os homens conversam e se divertem, as mulheres preparam tudo o que se vai comer (mesmo quando a dona de casa diz, contra a própria vontade, que não é preciso ajudar). Sim, porque os homens partem do princípio que as mulheres não precisam de ajuda, até porque já estão habituadas e ir à cozinha perguntar "querida, precisas de ajuda?" é desperdiçar tempo fulcral para perguntar ao irmão como andam as notas do filho e se ele sabe que curso vai seguir. Já para não mencionar que, ir à cozinha, significa ignorar esse mesmo irmão, e isso é como uma facada traiçoeira nas costas.
Mas chega então a hora de jantar, e o tio Alberto já estava a desesperar secretamente, sim, esse "penetra" que está ali, acima de tudo, pela refeição grátis (há sempre um). Mas o entrecosto não chega logo (isto se não for o tal frango frito): primeiro temos os preliminares da refeição, ou seja, as entradas, que servem acima de tudo para abrir o apetite (excepto para as crianças que, inteligentemente, já sabendo o que vem aí como prato principal, comem o máximo de entradas possível para não sofrerem com o entrecosto... bem, pelo menos até a mãe dos meninos lhes dizer que não comem mais porque já vem aí a carne!). E é aí que surge o primeiro tema, já fora das conversas de circunstância e que se prolongará durante o prato principal: o futebol.
O futebol é um daqueles assuntos imperativos de qualquer jantar familiar. Mas não é só! Em jantares de amigos, de trabalho ou até do partido lá está ele! Fala-se de como o Pinto da Costa é um falcatrueiro, de como o Sporting está a ir pelo cano abaixo ou como a mudança de treinador vai afectar o Benfica (sim, até porque não existem mais clubes em Portugal e no resto do mundo para além destes três). A qualidade do futebol ou o golo de A, B ou C são assuntos secundários, mas ás vezes lá aparecem. Mas todo o homem neste país percebe tudo e mais alguma coisa de futebol (e depois há aqueles que conhecem toda a formação de qualquer equipa da terceira divisão russa), e as mulheres, não ligando muito ao assunto, ouvem apenas para acompanhar ou ignoram. Todos conhecem as vantagens do 5-3-2, ou as desvantagens de ter aquele central a jogar a lateral direito, e isso discute-se. Não é por acaso que o futebol é o desporto-rei: é o desporto mais popular do mundo! É capaz de afectar profundamente todo o ser humano minimamente sensível. Capaz mesmo de fazer um homem pinchar de alegria quando a equipa marca um golo, atirar as almofadas da sala de estar contra a parede quando a equipa sofre um golo, e até o clássico berrar para a tv contra a incompetência dos jogadores, como se estes estivessem a ouvir. E é esta emoção toda que faz com que o assunto seja apaixonadamente discutido. A mulher saiu, foi buscar o entrecosto e ninguém deu por nada, porque estes sócios estão concentradíssimos neste assunto fulcral da vida.
A meio do prato principal o assunto esgota-se, mas surge um novo de forma natural e inevitável: a política. Ter a televisão ligada na Sic Notícias durante o jantar também é um bom catalisador para dar início a esta conversa. Mas enquanto que o futebol ainda se discute com relativa tranquilidade, a política transforma a mesa de jantar num campo de batalha de ideologias totalmente opostas. Porque o avô totalitário não concorda nada com o seu filho comunista que viveu o 25 de Abril efusivamente, e aí abrem-se velhas feridas. Para variar, as mulheres lá vão participando, dando uma ou outra opinião sobre o estado do país ou a situação social. Este último assunto acaba por ser o mais falado à mesa, porque há sempre alguém que viu um cigano a andar num bruto Porsche, e isso está mal! Não pode ser, não há direito. E se anda num bruto Porsche, é porque trafica droga nos bairros sociais e, se calhar, ainda vive à custa do dinheiro dos contribuintes. Depois fala-se da (in)utilidade dos cursos das Novas Oportunidades (porque há sempre alguém na família que já fez parte disso), da vaga de assaltos no sul e na pouca vergonha que é o nosso Governo não fazer nada pelo nosso amado país. Sim, porque há sempre meia-dúzia de personagens ultra-patrióticas à mesa. E este assunto costuma morrer com o fim do prato principal.
E é quando a dona de casa vai buscar a sobremesa (e alguém lhe pergunta se quer ajuda, e ela muito educadamente responde "oh, não precisas, não te chateies) que a avó Quitéria dá uso ao "seu" momento, e pergunta aos netinhos como vai a escolinha (sempre com os diminutivos). Eles dizem que vai boa, mas as mães lá metem a boca no trombone e dizem que houve um deslize a matemática ou a português. Mas depois de apontarem os defeitos arrependem-se, e começam a enumerar os grandes feitos dos filhos, mas mais uma vez, a mesa transforma-se num campo de batalha, porque todas as mães querem sentir que o filho-prodígio é seu, e só seu. E os homens assistem, porque qualquer luta entre mulheres, quer seja física quer seja verbal, é um espectáculo digno de ser comparado ás batalhas dos gladiadores da Roma antiga, e é impressionante como não se paga para ver.
Por fim, é impressionante como o passar das horas e o sono afectam as conversas na casa. Sim, leram bem, as "conversas", no plural, porque por esta altura já as pessoas se dividiram em grupinhos para discutirem os seus assuntos, enquanto as crianças vão brincar e o bebé dorme sossegadamente no carrinho à entrada da sala. Também é extremamente comum, por esta altura, sair um ou outro casal na família, e ás vezes até alguns viúvos que, saiba-se lá porquê, tem de se levantar cedo na manhã seguinte, mesmo não sendo "dia de trabalho" (e se estiveram na idade da reforma, ainda mais escandaloso é). É por esta altura que as conversas ficam mais sentimentais, calmas e silenciosas. Fala-se da mãe da vizinha da tia da cabeleireira da irmã da avó Quitéria, que sofre com uma doença terminal, ou do Joãozinho, um amigo de infância que recentemente perdeu a mulher... porque ela o deixou (o álcool faz isto). Todos se queixam da vida, mas todos se mostram solidários, especialmente se a sua ajuda não for necessária. Mas depois as pessoas lá começam a dizer que têm de ir embora que se faz tarde, não porque estão cansados e entediados, mas porque têm alguma coisa para fazer de manhã.
E assim acaba um jantar de família igual aos outros todos, mas que se releva uma necessidade incontornável para o ser humano. Bam-haja o tradicionalismo das conversas de jantar, porque é uma questão de manter uma cultura viva!
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